2 de dezembro de 2022

GHOSTING

Os seres humanos têm mais de um lado.

Rachel Pollack


O amor envernizado pelo nunca.

Natália Timerman



Quando três atendimentos seguidos trazem a mesma questão, pouca atenção é dada. Acontece. Mas quando as três leituras, cada uma para um consulente diferente, apresentam as mesmíssimas cartas para essa mesma questão, o intérprete se surpreende. E olha que é difícil um oraculista se assustar. As três perguntas, que são uma só, eram a respeito do comportamento da pessoa que não voltou mais. E a análise, que sempre se modifica de acordo com o contexto — regente excelso de toda interpretação oracular realmente útil —, convergiu de forma assustadora. É só me acompanhar que eu conto. Aliás, se você está aqui, talvez precise ler e saber a respeito. Mesmo. Confie.




A SACERDOTISA + OITO DE COPAS = GHOSTING



De novo: uma pergunta, feita por três pessoas diferentes, rendeu essas duas cartas. Não é comum esse fenômeno. E aplico um par porque gosto de um Arcano Maior e um Menor: a riqueza de detalhes se garante e a interpretação alimenta o consulente com o que ele precisa (não bem com o que ele quer) saber. São sempre duas imagens complexas, muitos símbolos a serem administrados. Um par de arranjos simbólicos que se complementa e se traduz, por mais difícil que pareça. Sempre um senhor desafio — tipo um relacionamento abortado sem aviso prévio.


“Essa pessoa está fazendo ghosting”, foi a minha resposta a partir da segunda consulta. Já suspeitava na primeira, pois a combinação ilustrava o meio que óbvio: a pessoa, motivo da consulta, preferiu silenciar-se e afastar-se. Simples assim. “Bem covarde assim”, concluiu a pessoa-consulente. Pois é, covarde assim, dadas as cartas da postura enclausurada e de certo modo afastada da realidade (A Sacerdotisa) e que decide bater em retirada, independente do que estava sendo construído em termos afetivos (Oito de Copas). Em um baralho bem mais antigo que a obra-prima de Pamela Smith, talvez fique mais difícil visualizar a cena e chegar a esse consenso, mas está tudo lá. Garanto.




A dupla fantasmagórica na versão de Marselha
Camoin & Jodorowsky, 1998



Sim, tudo na Cartomancia é questão de contexto. Sabe-se, respeita-se. Essa palavra preciosa, esse poder absoluto que se instaura na medida em que se embaralha as cartas. Nunca uma leitura é a mesma, mesmo que as cartas sejam. Aprendemos assim. Eu ensino assim. Mas nunca é muito tempo, e esse exato contexto, de três pessoas diferentes com a mesma pergunta idêntica e as mesmas cartas para respondê-las, nos joga no óbvio: as três pessoas  preferiram se afastar. Sumiram. Decidiram "dar um perdido", na linguagem direta. 


Para isso já existe esse termo nos melhores dicionários: ghosting, o mesmo que tornar-se um fantasma, já que o amante-algoz pode bloquear o contato, silenciar conversas e até mesmo trocar de número celular ou perfil em redes sociais — tudo para sustentar um fim de sua parte, ainda que não declarado nem trabalhado com a outra parte, geralmente interessada e perdida. Um fenômeno do nosso tempo, cada vez mais comum. E cruel, por vezes.





Gabrielle Lamontagne



O ghost é aquele que some, silencia conversas e não responde a nada do que você manda. Mas te vê. Te acompanha, como uma presença quase invisível, pelas observações de postagens ou pelas raras curtidas que pode dar para se fazer presente de algum jeito. Quando não curte ou interage no mínimo do mínimo, só orbita: visualiza stories, confere secretamente suas redes sociais e atua como stalker no silêncio profundo do seu canto. Não faz nada além disso. Por trás de uma quietude misteriosa que julgam ser resposta óbvia — “não estou disponível, não quero mais, foi um erro, prefiro deixar assim” — tende a haver uma pessoa emocionalmente destruída, imatura ou medíocre. 

    

Podemos ir (e vamos) fundo na interpretação das cartas. A Sacerdotisa é nossa musa impassível, a mãe espiritual, a guia interna. Tipo fada-madrinha, metáfora para o nosso potencial adormecido para materializar os próprios desejos. Lembro de Rachel Pollack, na mais nova edição dos Setenta e Oito Graus de Sabedoria (confira clicando aqui), encarando esse arcano como "o potencial em nossa vida — possibilidades muito intensas que não realizamos, embora sejamos capazes de senti-las como possíveis". Essa pode bem ser uma das convicções que o agente do ghosting carrega: o que bem poderia ser, mas não será. Será? O que sabemos é que "a ação deve acontecer em seguida, do contrário, o potencial nunca se realizará". Se Pollack diz, vale considerar. 




O Oito de Copas 
e cena de Persona (1966), de Ingmar Bergman


Já o Oito de Copas é essa paisagem quieta, o advento da evasão. Ainda que a carta tenha cores, para mim sempre será a cena de algum filme de Bergman — quase sempre uma arquitetura da despedida. É um arcano frio e húmido, como o sereno caindo em silêncio. Como o que não é, mas que poderia ter sido.


Impossível não notar o eclipse cravado à esquerda do nosso desertor. Se eclipses não são fofos nem na Astrologia, alguém acha que seriam aqui? Ele é o emblema de "uma desaparição", isto é, ele marca o "ocultamento acidental da luz", segundo Chevalier e Gheerbrant, no precioso Dicionário de Símbolos. Mau agouro? Assim no céu como na terra. Era dia, e a lua se pôs à frente do sol — o emocional, escrevendo em linhas tortas e rochosas, se sobrepondo ao claro racional.




Escorrem lágrimas da Grande Senhora 

ou é impressão (nossa)?


A pessoa deixa todas as taças em pé (tudo parecia bem, e talvez até estivesse muito bem), e bem assim se prontifica  a sair, desligar-se, desaparecer, declarar (declara?) um rompimento sem qualquer explicação. Se para alguns é uma lâmina de peregrinação, de sombrias jornadas interiores ou de passeios noturnos pela solidão, para outros é, indefectivelmente, sinal de desistência, fuga, abandono. Não verás coração algum, visto que terra desolada.


Se me atenho ao baralho de Aleister Crowley e Frieda Harris, o Oito de Copas é chamado de INDOLÊNCIA. Tenho um senhor stellium em Escorpião e Mercúrio em Sagitário, então vou mais fundo, até chegar no osso da palavra (que prazer a etimologia, ainda mais quando ela confirma conceitos): se o subtítulo do arcano evoca apatia, negligência, ociosidade, preguiça, insensibilidade, a raiz latina indolentia significa ‘ausência de dor’. Pois é. O que sente, de fato, alguém que do nada abandona alguém?





THOTH TAROT
idealizado por Crowley e gerado por Lady Harris


Se ainda me atenho às duplas de Arcanos Maiores e Menores, confirmo que o Oito de Copas, quando em outros tantos possíveis contextos, (felizes ou não), pode atenuar ou mesmo anestesiar o efeito do Maior. Acontece. E seu título esotérico, dado por MacGregor Mathers e difundido pela Golden Dawn, também nos mantém nessa estrada perdida: Senhor do Sucesso Abandonado. E não é que tinha tudo para dar certo? Tinha. Tínhamos mesmo.


Ghosting é um termo interessante porque fala obviamente de fantasma. A Sacerdotisa pode até nos oferecer alguns insights, levando em conta sua labuta fechada, seu cotidiano restrito, sua vida hermética. A conduta de uma viúva, uma mulher casta, uma moralista. Também prefiro as abordagens que tomam este arcano como verdadeira sacerdotisa, senhora da terra, da água e da lua, mas aqui pensemos em alguém com suas razões e confusões, a posição estática, o espectro de uma freira com sua vida reclusa. E, se me permito forçar um pouco a barra das analogias, podemos ver a pessoa que pratica o ghosting como uma espécie de entidade: A Freira, um dos fenômenos do terror contemporâneo, nos serve bem. O demônio Valak toma a forma de uma madre superiora que jamais fala — típico do ghosting, não? Só assombra. E some.





PANIC TAROT, de Technicolormoth
e cena de A Freira (New Line, 2018)


Não à toa, uma nova modalidade de ghosting é o chamado haunting, que funciona de fato como uma assombração: a pessoa vê tudo o que você faz e posta, mas nunca se manifesta. Como fica a cabeça (e o coração, meus deuses) da pessoa que é vista por quem ama ou deseja e é ignorada sumariamente se aborda ou manda mensagem, por exemplo? A Sacerdotisa, rainha do mistério, aqui representa o comportamento ausente de quem parece levar um vida selada, que se exime, se poupa, se fecha e se deixa à mercê do próprio medo e imaturidade. É irônico, porque seu outro lado é a pura e segura introspecção, a viagem interior que traz calma, domínio sobre o próprio oceano interno (as emoções) e a verdadeira sabedoria. Não se menospreza o alcance da meditação nem a força de quem reza. Mas se ela sabe ser emocionalmente coerente, também pode ser pragmaticamente fantasmagórica.


"Fantasma" vem do latim phantasmatos, "imaginação", "devaneio". Ficaríamos umas boas horas nesse encontro, à luz de Lacan, falando sobre o fantasma de um e o fantasma do outro — o meu enquadramento, minha inexorável necessidade de ser desejado e minha idealização do outro, essa forma sem matéria, que parece deturpar o fluxo natural das coisas, já que não se mostra mais desejante. Como pode? Mas fiquemos com as cartas e evoquemos uma outra, talvez propícia aos três casos (e presente neles, me lembro bem): o Sete de Copas, a carta da fantasia, das altas expectativas. “Se tudo vai bem, como segurar a vontade de fazer tudo ser perfeito?” Impossível. Copas, aliás, é o reino mais perigoso do Tarot; ele é repleto de delícias e abismos. Não é assim a paixão, às vezes? Há de se ter cuidado com o que parece tão promissor até que a morte não nos separe.





O Sete de Copas de Waite e Pamela Smith
Copo vazio (todavia, 2021)


Mas em vez de taças transbordando de maravilhas, o ghosting também nos faz crer que dentro delas pode não haver nada. Um caso recente da literatura brasileira é o livro Copo vazio, de Natalia Timerman. O romance retrata Mirela, que se esforça pesado — ora aos pedaços, caindo no ridículo, ora demonstrando força e amor verdadeiros — para administrar, ou pelo menos entender, o sumiço de Pedro, com quem vinha se relacionando numa boa. Um dos pontos cruciais da trama (não porque nos interessa mais, juro), Mirela recorre a Mauro, um homem que lê os búzios e as cartas. Durante a sessão, ela descobre detalhes do seu futuro e a fecha perguntando: “O Pedro vai voltar?” 

    

Se essa é a pergunta clássica de relacionamentos que todo mundo um dia pode vir a fazer a um oráculo, tomo espaço para defendê-la. Já fui ferrenho ao declarar sua validade em um evento presencial de Tarot e a defenderei sempre. É que por parte de alguns oraculistas, essa questão é pequena, tida como curiosidade barata, um sub-aproveitamento da ferramenta e até motivo de chacota entre soberbos, cruéis e fracos em seu ofício (conheço alguns). Toda pergunta que uma pessoa apaixonada (leia-se perdida e por vezes machucada) traz às cartas pode e deve ser considerada e acalentada com respeito. E se justo essa questão — “a pessoa vai voltar pra mim?” — é tão velha quanto o próprio Oráculo de Delfos, quem são esses frios na fila do pão para rechaçá-la? 






O caso é tão sério que a respondi, devidamente, depois de muita pesquisa de campo e revisão técnica, no Tarot Direto, lá no Personare. Se você precisa saber se alguém vai voltar, independentemente do contexto, clique aqui.




CONCLUSÕES?


O que fazer quando se toma um ghosting? Como entender quem não se desliga claramente? Como aceitar um abandono, visto que havia uma ligação real ali, independente de compromisso e até mesmo de monogamia? Existem diretrizes. Uma delas é devolvê-lo na mesmíssima intensidade. Tão intenso quanto foi o vínculo, o sexo, o sonho. Silenciar tudo, ou seja, fechar-se em Papisa (patrona das Copas); sair andando e sumir, isto é, dar um Oito de Copas bem dado. Pagar na mesma moeda, mesmo que faça pouca ou nenhuma diferença à pessoa-fantasma. Arrastar-se e humilhar-se fica fora de cogitação, até porque a pessoa aflita já pode ter feito isso de alguma ou de várias maneiras. Claro que a vida é esse teatro romano a céu aberto, às vezes com vulcão em erupção bem próximo ou na própria cena, “mas como posso me deixar chegar a esse ponto de sofrimento?!”, diz um dos meus consulentes. Então, por via das tantas dúvidas, não fazer nada é uma saída. Pedir explicações, exigir posicionamento e descer o nível em nome de resoluções pouco adiantaria — estamos diante de quem não está diante de nós. Ainda que esteja, com sua presença sutil, velada, instagrâmica. Maria Homem, uma das psicanalistas do momento, traz as questões mais importantes a serem feitas:




Maria Homem - frame do video 'Ghosting'
Assista clicando aqui


Enquanto se reflete sobre esse tiro (no meio do peito), não fazer nada, em termos de Tarot, seria outro aconselhamento digno. Acredite. É fazer muita coisa. Eu diria e já cheguei a dizer, em consultório: continue vivendo sua vida, ainda que contando com a presença desse fantasma (porque sei que você conta). Por mais que doa, que sangre e quase te mate. Siga. Distraia-se. Continue como se ele não existisse de fato. Tomemos a frase 'fantasmas não existem', tal como aprendemos para domar o medo do desconhecido, do que nos foge ao domínio das mãos e à nossa compreensão. 


Porque uma das artimanhas do ghosting é justo a constante eternização dessa pessoa ausente no outro, como reflete Mirela, a certa altura, em Copo vazio: "Talvez Pedro seja um lugar seguro, até dele mesmo, uma chave para entrar no terreno do que sempre nunca será; um aceno, direto de um instante, ao tempo que não transcorreu, acessível em lembrança nos finais de tarde da vida toda". 




A canção The Quiet (2015), de Troye Sivan, retrata bem um ghosting
Clique aqui para ouvir



Ainda assim, saibamos que, nas montanhas do desejo e do amor, o término indigno de uma relação, baseado no silêncio e no afastamento deliberados, não são respostas nem posturas; ele são uma espécie de crime, alguns até com requintes de tortura. E são, sobretudo, um dos picos mais altos da irresponsabilidade afetiva.




O Oito de Copas enquanto percurso do abandono e O Eremita enquanto lobo "solitário" 
vendo e acompanhando de longe (ou do alto), com algum conforto, a pessoa que deixou para trás


Porque existem vários motivos para o ghosting, claro, dos mais inofensivos e justificáveis aos mais absurdos e cruéis mesmo: do medo paralisante à plena indiferença. Não nos enganemos: há pessoas que forçam todas as barras possíveis ou exageram no grau de envolvimento e não deixam outra escolha à presa a não ser fugir, cortar todos os canais de contato. Há quem prefira passar por insensível a ter que arcar com a dependência emocional do outro. Entende-se.


Tanto que o restante das três leituras se mostrou diferente, naturalmente, e pude esmiuçar melhor cada caso. Mas parece unânime que a pessoa que some é um poço de solidão. Ela lida assim com as pessoas porque é o lugar comum dela: estou só e sou só. Não se permite uma conversa ou mesmo um entrave de forma adulta, saudável. Ela pode ser a pessoa mais linda e promissora do mundo (pode mesmo, acredite), mas não sabe ou não quer administrar seus próprios sentimentos, seu grau de comprometimento consigo e com o outro.     


Mesmo que fosse para dizer “não podemos mais nos ver, eu não quero, me desculpe mesmo”. Não age. Sendo assim, nenhum ghost merece qualquer tortura por parte de quem ele lesa com silêncio e distanciamento, porque ele é, sim, plenamente irresponsável por si. Talvez valha o mais terrível dos memes:






Porque há casos em que vale mesmo o clichê: quem quer vai atrás. Mas isso não desculpa, de forma alguma, o comportamento de quem prefere se ausentar da vida de alguém com quem já se tem um convívio considerável ou com quem alimenta um vínculo intenso e propício. Ainda mais sem aviso prévio. Em vez de se apiedar e querer salvá-la como se fosse você a pessoa certa para ela, pare e reconheça: cada um tem seu tempo — até mesmo os destruídos. Os imaturos. E os medíocres. Mas dói. É difícil. Anne Carson, em sua obra-prima Eros, o doce-amargo (Bazar do Tempo, 2022), é cirúrgica: "quem deseja o que não foi embora? Ninguém. Os gregos deixaram isso bem claro".


"Bom, e no final das suas três leituras" — você pode me perguntar — "as três pessoas voltaram, de acordo com as previsões?" Esses detalhes eu deixo para a sua imaginação. 



Nos vemos em breve. Ou não.












PS: SE VOCÊ ESTIVER SOFRENDO 


Eu entendo, respeito e te digo para confiar no seu destino. Você provavelmente fez tudo o que pôde, foi nos mais baixos recessos em nome do desejo, do amor ou pelo menos da compreensão, do jogo limpo que pode e deve haver entre duas pessoas adultas. E só por isso a sua consciência deve se manter leve e limpa. Está pago. Você não se eximiu do que sente, e isso é ouro. O seu ouro. Se a pessoa se foi, evite julgá-la. Foi e pode voltar, mas não espere por isso. Não mais. A esperança não é boa amiga. Escolhas e atitudes sensatas são sua escolta. O coração puro, e batendo, vale mais que qualquer humilhação. Você não precisa disso. Eu sei que todos os planos pareciam perfeitos, mas você ainda nem imagina o que lhe espera. E olha que não sou nada conformista nem otimista deslumbrado. Honre esse coração. Caminhe. E fique com essa minha frase, que de inocente não tem nada: confie no seu destino. Mesmo.


7 de agosto de 2021

O CINCO DE OUROS



A fome é que é obscena.

José Saramago



Eu nunca me demorei no Cinco de Ouros. Nos idos de 2000, quando comecei meus estudos oraculares, este era o arcano em que pensava compreender o suficiente essa cena absoluta de penúria — a maior, a mais triste e dura fonte de pobreza de todo o Tarot. Ledo engano meu. E sempre soube desse engano, atraído pela imagem criada por Pamela Colman Smith a pedido de A. E. Waite, que prenuncia “problemas materiais, acima de tudo”. Uma imagem que merecia — e sempre merece — um estudo debruçado. 


Cinco de Ouros não só enquadra a arquitetura da miséria, com suas diversas particularidades e suas devidas profundezas, como ensina a ver a realidade com a devida atenção e a necessária postura firme diante dessa verdadeira obscenidade. Cinco (mil gatilhos) de Ouros.





FIVE OF PENTACLES 
Smith-Waite Tarot 
U.S. Games, 1971



Impossível não pensar, ao menos por cinco minutos, em Pamela Colman Smith erigindo o muro escuro de uma catedral como uma crítica à Igreja em relação aos mais necessitados. Se me volto ao Sola Busca, até aceito que Smith possa ter se baseado no Cinque di Denari deste que é um dos maços de Tarot mais enigmáticos e importantes da História para compor o seu Five of Pentacles.

 





I Tarocchi Sola Busca (Veneza, 1491) 
Pinacoteca di Brera


E se falo em catedral, penso em Fulcanelli. O lendário alquimista francês afirma que “a catedral é o refúgio hospitaleiro de todos os infortúnios”, onde os doentes imploravam a Deus o alívio dos seus sofrimentos, permanecendo nela até sua completa cura. Isso ocorria em Notre-Dame de Paris em que aflitos, convalescentes e debilitados eram recebidos por médicos na entrada da basílica, ao lado da pia de água benta, e várias noites. É, portanto, “o asilo inviolável das pessoas perseguidas e o sepulcro dos mortos ilustres", servindo a todos, sem olhar a quem. Além do paredão gelado de uma catedral, este pode ser o muro qualquer outro templo. Então penso em José Santa-Bárbara, um dos maiores leitores de Saramago e grande ilustrador d’O Memorial do Convento. E daqui em diante também posso ver, no Cinco de Ouros, Baltasar e Blimunda bem rentes ao santuário de Mafra.




Sete-Sóis e Sete-Luas 

José Santa-Bárbara, 2001



Os dois retirantes concebidos por Smith têm iconografia própria. Pouco importa, nesta altura da humanidade, a fonte exata em que ela bebeu para compor uma das cartas mais difíceis do Tarot. Dois mendigos são emblemáticos na história das artes gráficas, infelizmente. Na carta de Smith não vemos a entrada, apenas a ostentação colorida de um vitral que remete à farta saúde de uma instituição religiosa milenar. 


Dois andarilhos, pessoas visivelmente debilitadas, seguem seus destinos pela neve. Deram de cara com as portas fechadas, sumariamente impedidos de se abrigar no templo? Ou estariam quase chegando à entrada, alimentando esperanças a passos dolorosos, de serem recebidos na Casa de Deus? Seja como for, o drama estático — a cena pausada que a carta mostra — é que prevalece na teoria e na interpretação. O Cinco de Ouros abarca as mazelas do caminho sem floreios. 




Gravura de Cornelis Massijs (1538) . 
Acervo do British Museum



Não há flores na rua da amargura. Não há perdão para quem se esforça na glamourização da pobreza com a tal da 'resiliência', palavra da moda dentre os mais ingênuos da onda holística e do coaching. É esperado que quem enfrenta o frio cortante da miséria se torne mais forte e resistente aos percalços, mas nunca é garantido. A vida adoece. O frio mata. E o Cinco de Ouros continua sendo um quilômetro infrutífero de uma terra vasta de oportunidades. A pé. Sem choro nem piedade. 


Uma das profundezas dessa carta se revela a partir da clara noção de que não temos noção clara a respeito do gênero dos dois caminhantes. Podem ser dois homens ou, como tem se mostrado frequente na maioria dos baralhos derivados do imaginário Smith-Waite, um casal heterossexual: a mulher, mais alta, e o homem, mais debilitado, valendo-se das muletas e ostentando o sino, sinal de que os leprosos, distanciados por todos, se aproximam do vilarejo. 





Gravura de Adriaen Matham & Adriaen van de Venne (1630-1650). 

Acervo do British Museum



Com este instrumento, tão discreto que passa silencioso pelos cartomantes desatentos, se vê que a Igreja torce o seu nariz de ouro para ajudar a quem realmente precisa. Ainda assim, Chevalier e Gheerbrant alegam, em seu utilíssimo Dicionário de Símbolos, que “o sino evoca a posição de tudo o que está suspenso entre o Céu e a terra, e, por isso mesmo, estabelece uma comunicação entre os dois. Mas também tem o poder de entrar em relação com o mundo subterrâneo”. O subterrâneo liga-se ao que está longe das vistas embora bem embaixo do nariz da sociedade: o dito submundo dos viadutos, as ruas fechadas pelas drogas, os doentes terrenos descampados e os becos dos viciados em que virtude alguma parece ter vez. 





People scrambling to get away from a leper ringing a bell 
Pintura de Richard Tennant Cooper (1912).
Wellcome Collection




Com essa deixa vamos nos aprofundando na paisagem impossível do Cinco de Ouros, que fala claramente a língua dos homens e clama pelo socorro dos anjos. Outra interpretação, também com frequência trazida ao Tarot, é a de que se trata de uma mãe com seu filho. A partir do baralho de Bill Greer e Lloyd Morgan, uma das imagens católicas mais poderosas é aventada neste arcano:






Five of Pentacles - Morgan-Greer Tarot (U.S. Games, 1979)

La Pietà - Michelangelo (Vaticano, 1499)



Só quem vive numa bolha nunca viu uma mãe pedindo esmola com um filho a tiracolo. E só quem vive mesmo numa bolha, bem turva de tanto positivismo tóxico, não vê que este arcano dá voz aos fracos e oprimidos, aos abandonados e apagados pela sociedade. A nevasca torna invisível que passa. Nos baralhos em que o Cinco de Ouros centraliza a mater dolorosa, o protagonista deixa de ser o infortúnio na nevasca para se tornar o calor espiritual, que reconforta aqueles que sofrem dificuldades físicas e financeiras. Não à toa, o triângulo de Michelangelo se repete com os vitrais — mãe, filho e Espírito Santo, que roga por nós. 






O vitral da imagem Smith-Waite é um enigma que causaria grande apetite nos decodificadores de imagens se não fosse tão óbvia em seus segredos. Trata-se de uma árvore florida, frondosa e forte o bastante para representar o espírito sobre a matéria: quatro tentáculos abaixo — demarcando as firmes estruturas materiais, morais e sociais  — e um acima, o espírito, ostentado como se fosse Deus acima de todos. Balela eclesiástica, argumento plausível para a santa mamata dos vendilhões que gozam do lado de dentro dessa janela tão próspera. 






Em outras versões, como a de Frieda Harris, considera-se o pentáculo invertido sempre como uma “um símbolo de alguma tendência sinistra”, segundo o próprio Crowley — “o triunfo da Matéria sobre o Espírito”, que gera séria instabilidade nas fundações de tudo o que é palpável. O mesmo ocorre com o Cinco de Espadas com as suásticas, devido aos ataques nazistas a Londres em novembro de 1939, mesmo período em que Lady Harris concluía, numa capital literalmente assombrada pela guerra, os Arcanos Menores. Coincidência ou não, os bombardeios de Hitler também tonificam a desgraça anunciada do Cinco de Ouros: nas palavras do próprio Crowley, “seu efeito é aquele de um terremoto”, com os mesmos estragos possíveis. 





Harris-Crowley Thoth Tarot

Five of Swords — Five of Disks

AGMuller, 1986



Não entremos no mérito de muitas discussões a respeito do cinco, o profano número sagrado que sempre extrapola os espaços possíveis. Basta dizer que a vida é o sopro passando pelos dedos de uma só mão: 1. concepção, 2. nascimento, 3. crescimento, 4. maturidade e 5. morte. Nem falemos "amém" a Crowley, porque é preciso fazer justiça às suas úteis interpretações e aplicações invertidas. Mesmo tanto e tão associado a práticas de magia negra, na religião Wicca, por exemplo, o pentagrama com a ponta superior posicionada para baixo é um símbolo do Segundo Grau (o último e o mais alto é o Terceiro), assegurando que o iniciado segue em processo de desenvolvimento. Cinco é o número do espírito e da matéria combinados no corpo e no universo — vide o Homem Vitruviano de da Vinci —, mas nos Arcanos Menores ele também rege os conflitos naturais da própria interação entre as forças e as formas. Em Paus, Copas, Espadas e aqui, o Cinco é número e arcano de transformações reais e radicais. E continuamos bem longe de qualquer sensacionalismo satanista e suas teorias hediondas. Demoníaca é a miséria, a desigualdade e a política do abandono. 




FIVE OF COINS
The Alchemical Tarot (2015) & Tarot of the Sevenfold Mystery (2012)
Robert M. Place - Hermes Publications



Há teóricos que preconizam o Cinco de Ouros como o ponto crítico de um relacionamento afetivo, como se um período de provação chegasse aos compromissados. Não à toa, os atributos mais frequentes em diversos manuais franceses e italianos prenunciam o surgimento de uma ou um amante, abalando as estruturas de um casamento — nada mais catastrófico para a moral e os bons costumes, já que “não separa o homem o que Deus uniu”. Mas se pensarmos em sombras e luzes, a contraparte tão luminosa estaria em outro naipe, bem no arcano das alianças firmadas e do brinde tão celebrado: o Dois de Copas seria o mar de rosas e o Cinco de Ouros o seu contrário. Acaba sendo obrigatória, de tão óbvia, a associação dessa dupla com os versos mais célebres do Rito do Matrimônio católico, proferidos no instante da União das Mãos e do Consentimento: "prometo estar contigo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-te, respeitando-te e sendo-te fiel em todos os dias de minha vida, até que a morte nos separe."




Na alegria e na tristeza

Na saúde e na doença

Na riqueza e na pobreza



Não sendo (nunca) homogênea a massa de significados para esta carta em toda a literatura tarológica, aumenta a sua brecha interpretativa. De amor e amantes em Etteilla e em Papus a perdas e dificuldades, nos dias de hoje, o Cinco de Ouros culmina em um arcano transitório em relação ao desamparo e ao desespero. Como se não houvesse, de acordo com o provérbio português, mal que dure para sempre. Talvez eu fique com a frase bíblica que Sofia di Vincenzo, em seu livro sobre o Sola Busca, aplica ao nosso arcano: “post tenebre espero lucem”. Quem, vendo e vivendo a treva, não espera a luz? Eu espero calor a esses dois em dificuldade escancarada, no sentido térmico e humano. Porque o Cinco de Ouros é uma carta difícil, pesada. Como bem é o inverno numa cidade de pedra. 






São Paulo, julho de 2021. A temperatura chega a menos de 5ºC. Várias igrejas passam a alojar, nessas noites de frio que mata, diversos moradores de rua. Grande exemplo é o incansável padre Júlio Lancelotti, à frente da comissão de acolhimento aos desabrigados, que já deixou de ser um simples pároco da Mooca para se tornar um dos mais influentes religiosos do país nas redes sociais. Seu ofício cativa os que se importam e choca demagogos, hipócritas e falsos cristãos. Mas o que realmente deveria chocar — e infelizmente não choca, dado o Brasil de hoje —  são os comentários em suas postagens: “aquele cara de jaqueta e essa mulher de cabelo tingido?! Isso não é gente de rua nem aqui nem na China!”, como se as pessoas em situação de rua tivesse a obrigação de serem irreconhecíveis enquanto seres humanos, como bem manda o imaginário de certas ditas pessoas de bem. 



Instagram: @padrejulio.lancellotti



Não. O próprio Tarot ilustrado por Pamela Colman Smith assegura esta verdade, com seus rostos aleatórios que podem, certamente, ser os rostos de quaisquer outros personagens dos outros arcanos. Eu vejo as feições da mendiga na madame do Nove de Ouros e nas águas claras da Rainha de Copas. Eu vejo o mendigo de muletas na firmeza do Nove de Paus e, sobretudo, no rosto soberano do Rei de Espadas. Sendo assim, fica o óbvio: quem está agora no Cinco de Ouros pode ter estado e poderá estar em qualquer outra posição de qualquer outro arcano. Quem julga pessoas — eu disse “pessoas” — em situações deploráveis não ajuda em nada. Eu disse “nada”. Quem critica aqueles que ajudam de verdade perpetua as mazelas. As próprias e as dos outros.





O Cinco de Ouros tem sido um arcano invisível. Ele revela a nossa vulnerabilidade enquanto seres humanos, falhos e propensos a toda sorte de quedas. Pouco se fala dele a não ser em releituras que se distanciam de toda a tradição simbólica. Há mil casos e exemplos. Tal como são muitas pessoas em situação de extrema pobreza; tal e qual a pessoa que perde tudo e tem questionados os seus valores. Eu nunca havia me debruçado sobre o Cinco de Ouros e o motivo, agora vejo, é porque sempre considerei inadmissível normalizar pessoas em miséria extrema, em perpétuo risco de morte, em sofrimento por questões de primeira, segunda e terceira necessidades. É comum fechar os olhos a essas questões, mas não é humano perpetuá-las. O Cinco de Ouros é retrato (obsceno) universal do descaso, do nojo e da omissão dos grandes.


E continua em mente a cena arquitetada pela genial Pamela C. Smith. Ela é a base da adversidade, atributo já clássico deste arcano. O Cinco de Ouros não só contrasta a riqueza do templo com a pobreza de fora como escancara a imponência do que se cria — o templo — com a insignificância de quem criou — os dois andantes excluídos, os dois obreiros mal remunerados pelo Estado? —, mostrando que é mais fácil perceber o que podemos fazer do que quem podemos nos tornar. Glória da indiferença. Essa perspectiva, na atual conjuntura, dá margem a uma possibilidade necessária: essa que tida como uma das piores carta do Tarot, é uma carta de resistência. Ela ensina a dizer com mais frequência uma das palavras que preferidas de Saramago: “não”, convencido de que é preciso dizê-la mais e mais, “mesmo que seja uma voz pregando no deserto”. Ou no frio cortante. 




FIVE OF PENTACLES
Before Tarot - Eon & Simona Rossi
Lo Scarabeo, 2018 



Porque é importante dizer não ao acúmulo desenfreado de riquezas por umas poucas pessoas enquanto outras milhões passam fome, por exemplo. Porque é importante, agora vejo, depois de dois dias imerso nas analogias possíveis, notar o quanto é necessário, a quem o observa, sorteia e interpreta essa carta, não se esquecer jamais dos seus privilégios. E ajudar sempre — da forma como é possível e pelo tempo que for necessário — a diminuir a dor de animais e pessoas em condições cruéis. Esta é uma lâmina que machuca. Este é um arcano que ensina. 


O Cinco de Ouros clama pela noção sincera de que há dores piores que as suas. 

O Cinco de Ouros exige olhos e mãos para quem está lá fora, sem saber se haverá amanhã.

O Cinco de Ouros pede para se colocar no lugar de quem tem fome, frio e sede.

O Cinco de Ouros implora por justiça e misericórdia a quem desiste de si.

O Cinco de Ouros mede e revela a sua, a minha e a nossa humanidade. 







 





















P.S. Por mais cristão que pareça este ensaio (e mesmo não o sendo o seu autor), nada impede de abraçar a causa de um padre e de ajudar a quem precisa. Pelo contrário. Pouco interessa a religião; o que importa é ajudar. Quem critica e maldiz as atitudes de uma paróquia, uma entidade social ou um grupo beneficente alegando ideologias políticas e impondo convicções religiosas, também precisa de muita ajuda. Aliás, tem algo muito estranho e muito errado em quem lê Tarô e estuda Esoterismo, por exemplo, e não se volta a questões sempre urgentes como pessoas e animais em situação de fome, frio e maus tratos. Quem trabalha a favor da espiritualidade trabalha a favor da ajuda, da justiça e da vida. É uma missão. Assim como é interpretar os símbolos, esses seres — vivos e bem visíveis — ao nosso redor.





BREVE BIBLIOGRAFIA DE APOIO


CHANG, T. Susan & MELEEN, M. M. Tarot Deciphered. Llewellyn, 2021.

CROWLEY, Aleister. The Book of Thoth. Lancer Books, 1969.

DI VINCENZO, Sofia. Sola Busca Tarot. U.S. Games, 1998.

FARRAR, Janet & Stewart. A Bíblia das Bruxas. Alfabeto, 2017.

FULCANELLI. O Mistério das Catedrais. Edições 70, 1986.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. José Olympio, 2020.

LOUIS, Anthony. O Livro Completo do Tarô. Pensamento, 2020.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Companhia das Letras, 2019.

WAITE, Arthur Edward. The Key to the Tarot. Rider Books, 1999.